Cobertura
Sexta, 01 Outubro 2010 14:56 Mia Couto
Não sei se há melhor material literário que um mal-entendido. As nossas vidas estão repletas de situações que descobrimos, tarde de mais, encobrirem algo bem diverso do que pensávamos. O próprio termo “mal-entendido” sugere que a norma seja o “bem-entendido”, quando, na maior parte das vezes, nem sequer damos conta da distância entre expectativa e realidade.
Um desses mal-entendidos ocorreu-me no tempo da Revolução em Moçambique, nesse período em que uma visão chamada de materialista e científica não suponha sequer existirem situações dúbias. O mundo era claro e a preto e branco, e os tons cinzentos eram objecto da maior desconfiança. Nesse mundo claro e simples eu era jornalista. E numa dada manhã, fui mandado fazer a reportagem de um comício num bairro suburbano. Vais cobrir o evento, disseram-me. Seguia num carro do Ministério de Informação, instituição para a qual trabalhava. Era um Mercedes preto cheio de aparência, mas pobre e podre por dentro. O banco da frente estava meio destruído e o motorista instou que me sentasse atrás.
- Atrás? Mas atrás como os dirigentes?, argumentei.
O motorista, porém, resmungou alto ininteligível e lá fomos devagar. A bem dizer, devagar era a velocidade máxima da viatura. No caminho, deparei com um colega da rádio, um jornalista de origem goesa que caminhava penosamente para o mesmo destino. Ele era o mais tímido dos jornalistas que conheci em toda a minha vida. Parei a viatura e ofereci-lhe boleia para o comício que ambos devíamos reportar.
Não demoramos a chegar. Uma multidão se acumulava num descampado e, ao depararem com a nossa viatura, abriram-se alas e um coro de saudações ascendeu aos céus. De imediato entendi: tomavam-nos pelos dirigentes que viriam orientar o encontro. Em desespero, tentei abrir a porta, mas o fecho estava encravado. Ficamos eu e Tiago rodeados por manifestações de júbilo até que o motorista – com a lentidão de um mordomo – nos abriu as portas, confirmando, aos olhos da multidão, o nosso estatuto de chefia.
Assim que saímos do carro, os responsáveis políticos do bairro rodearam-nos com infindáveis vénias e encaminharam-nos para o palanque que, como altar divino, se erguia mais à frente. O ruído era ensurdecedor e os cantos revolucionários não permitiram que nenhum dos anfitriões pudesse escutar as minhas atrapalhadas explicações. Resolvi subir de tom e a minha voz se impôs:
- Nós ficamos aqui, entre as pessoas. Não subimos lá…
A minha voz tinha-se imposto, mas a minha razão não. Porque logo os donos da casa, com um sorriso determinado, retorquiram: “nem pensar, lá é que é o vosso lugar…”
Subi as improvisadas escadas do palanque como quem sobe para um cadafalso. Num ápice e sem poder reagir, eu e o tímido colega, estávamos sentados nas grandes cadeiras de espaldar destinadas ao dirigentes revolucionários. No instante seguinte, o secretário do comité de bairro dirigia-se a um roufenho microfone e pedia à multidão o máximo silêncio para que pudessem escutar “as sábias orientações dos nosso responsáveis máximos”.
A voz me tinha fugido e eu me ocupava apenas em descobrir um copo de água para aplacar a súbita sede que me queimava a garganta. Para meu alívio, percebi que era o meu colega que estava sendo chamado a proceder a uma solene alocução. Era ele que estava sendo tomado pelo líder. “Camarada chefe, clamou o secretário do bairro, as massas populares anseiam por escutar as suas palavras”. Espreitei de soslaio: o meu amigo estava num farrapo. As pernas tremiam-lhe tanto que demorou uma infinidade a reagir. Ainda o escutei balbuciar:
- O que fazemos? E se chegam os autênticos chefes?
Não gostei do termo “autênticos”. Porque me pareceu, de repente, que ele mesmo já se assumia como um “falso” chefe.
- Vai ao microfone e explica…
- Explico o quê?
Não sei se respondi e ele não escutou ou se palavra nenhuma chegou a sair-me da boca. A verdade é que o nosso anfitrião, agora convertido num animador cultural, aproveitara a nossa demora para cantar e passara mesmo para a clamorosa fase dos “vivas” e dos “abaixos”. A multidão respondia em uníssono e era como se aquela sincopada agitação substituísse, em meu peito, o compasso do meu coração. Foi então que vi os pés do meu colega se arrastando como um condenado. Cada passo dele parecia arrancado das entranhas da terra. Chegado ao microfone ele tossiu e disse qualquer coisa de tal modo enrolada que um silêncio pesou em todo o imenso descampado. Levantou o rosto para enfrentar o microfone, e falou em voz trémula.
- Bom, é que nós… eu e o meu camarada colega…, começou ele, e repetiu várias vezes: quer dizer, nós não somos…
O silêncio pareceu agora tornar-se um nevoeiro espesso que inibia o movimento de cada um dos milhares de pessoas presentes. E logo o dinamizador do comício atacou com mais uma série de vivas que eu e o meu acanhado colega debilmente secundamos. E, de novo, se abriu espaço para o que o “sábio” dirigente se dirigisse ao povo. Tiago se ergueu nos bicos dos pés para melhor se fazer escutar:
- É que nós vimos aqui para fazer a cobertura.
E novo silêncio. De repente, alguém da multidão gritou: “a cobertura, finalmente vão fazer a cobertura!” E uma excitada gritaria percorreu os populares como um arrepio. E brados ecoaram, em festa: “a cobertura, vão fazer a cobertura…”
Nesse instante, se escutaram as sirenes. Chegavam os verdadeiros responsáveis políticos. Os presentes se entreolharam espantados. O seu bairro merecia a presença duplicada de dirigentes? Comprovei, então, o poder da aguda estridência das sirenes. Num segundo, a moldura humana à nova volta se desmanchou para se refazer junto da delegação que acabava de chegar. Ficámos (eu e o outro jornalista) abandonados no palco, com o mesmo sentimento que deve afligir líderes depostos e os reis mortos. Aproveitámos o momento para nos esgueirarmos. Quando já entravamos para o carro ainda escutamos algumas pessoas festejando. Festejam a chegada dos dirigentes, sim. Mas festejariam também a chegada da cobertura.
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