Moçambique no Contexto da África Austral e os Desafios do Presente:
Repensando as Ciências Sociais
Maputo, 17 de Agosto de 2007
Traz-nos aqui hoje a lembrança de Ruth First. Lembrança sobretudo da intelectual e académica, lembrança da sua passagem por Moçambique, pela nossa Universidade e pelo Centro de Estudos Africanos, uma passagem de cinco anos iniciada por volta de 1977 e que termina abruptamente em 1982, com a sua morte, num 17 de Agosto como o de hoje, há vinte e cinco anos.
Esses cinco anos que ela aqui passou correspondem a um período importante na história desta região e deste país. Seguindo a lógica do mundo nessa altura, também a África Austral se dividia em duas regiões irreconciliáveis e em conflito aceso, a daqueles a quem chamávamos os Estados Brancos do Sul (a Rodésia e a África do Sul), e a dos países de regimes de maioria, conflito esse que a independência de Moçambique e Angola, havia apenas dois anos, agravara. A expressão mais palpável desse conflito, para nós, era a guerra fronteiriça que nos era movida por aquele a quem chamávamos o “tabaqueiro” Smith, que lutava ferozmente pela manutenção do acesso ao Corredor da Beira para exportar o seu tabaco; que lutava, sobretudo, pela sobrevivência do seu anacrónico regime (visto sob este ângulo, é ao mesmo tempo irónico e trágico o destino recente do Zimbabwe, feito de regimes anacrónicos em luta desesperada pela sua sobrevivência). Um pouco mais abaixo, o conflito com a África do Sul do apartheid, embora surdo ainda, era um conflito anunciado que em breve iria reclamar as suas primeiras vítimas em Moçambique. Que, a prazo, reclamaria de Ruth First a própria vida.
Por outro lado, são cinco anos em que, no plano interno, muitas e profundas transformações têm lugar, sob o signo de um acontecimento importantíssimo da nossa história recente: o III Congresso da Frelimo. Um congresso que de alguma maneira põe fim a um confuso mas entusiástico período transitório, relativamente “liberal” ainda, para determinar e implementar a ordem socialista.
Evidentemente que em 1977 não viamos as coisas com a clareza com que as vemos hoje. Só ao passado costumamos arrumar em gavetas criadas pelas nossas categorias de análise. Ao presente cabe-nos vivê-lo, com as clarezas e obscuridades que dele fazem parte. E este passado a que me refiro era, há trinta anos, o nosso presente. Um presente difícil, em que aos poucos sentíamos moderar-se a euforia que a independência criara: gradualmente voltaria em breve a instalar-se a guerra, chegariam os racionamentos de alimentos e combustível, etc.
E como vivíamos nós, na universidade, esse passado que na altura era presente? Vivíamo-lo de forma algo atabalhoada, com alguma confusão, mas sobretudo com grande entusiasmo. Embora ainda um espaço elitista, a universidade fervilhava de ideias, não tinha grandes complexos de culpa do seu passado, procurava sobretudo encontrar formas de participar na grande tranformação que nessa altura se iniciava. Tudo era urgente: misturavam-se as urgências de preparação da defesa contra as agressões que nos moviam com as urgências de pensar o desenvolvimento. E com a urgência de achar comida para levar para casa.
O edifício a que hoje chamamos genericamente de CEA pertencia então ao Instituto de Investigação Científica de Moçambique (IICM), nata da academia da última fase do período colonial. É um edifício que resumia claramente o espírito desse período, servindo de espaço de confronto entre velhas estruturas que agonizavam e novas estruturas que despontavam, confronto esse mais ou menos administrado por um director chamado Pedro Alcântara.
As velhas estruturas, embora sofrendo alguma inércia nas fardas e hábitos de velhos contínuos e serventes, procuravam responder com algum empenho aos novos tempos, é justo reconhecê-lo. Isso pode ver-se pelo número e qualidade de exemplares das Memórias do IICM empilhadas nos depósitos do Centro de Documentação, nessa altura: em 1974, por exemplo, Rita-Ferreira publicava uma Etno-história e Cultura Tradicional do Grupo Angune, e no ano seguinte Leonor Correia de Matos traduzia e anotava os Cantos e Contos dos Rongas, de Henri Junod. Esforços de participação que hoje consideraríamos louváveis, mas com os quais, na altura, não estavamos minimamente dispostos a contemporizar, naquilo que poderia ter sido um mais produtivo diálogo de transição. Recusávamos esse diálogo com sobranceria, ganhando com isso maior leveza mas, em contrapartida, ficando sem o benefício da experiênca profissional de cientistas sociais de algum relevo, esses e outros. Consequentemente, Luís Polonah passava com o seu chapéu de palhinha, Rita-Ferreira ainda dava umas aulas, Leonor Correia de Matos chegava no seu pequeno carro salvo erro creme (talvez um Simca ou um Morris, carros que hoje não se usam e mesmo nessa altura se iam tornando raros) e ninguém parecia já reparar neles. Sentados nas cadeiras estofadas de um bar relativamente luxuoso (o bar dos académicos coloniais, onde nem as bebidas alcoólicas destoavam), viamo-los passar e pareciam já fantasmas do passado.
Entretanto surgiam as novas estruturas. Onde é hoje a biblioteca do CEA criava-se, no início de 1976, o TBARN (Centro de Técnicas Básicas para o Aproveitamento dos Recursos Naturais), verdadeiro percursor das discussões sobre os modelos de desenvolvimento a que o país assistiria. Dirigidos intelectual e administrativamente pelo pintor e escritor António Quadros, liamos Rene Dumont e Leroi-Gourham, ao mesmo tempo que estudávamos formas de conservar os cereais, de construir bem e barato com materiais disponíveis, de utilizar a tracção animal, de aproveitar a força da água em pequenas represas e carneiros hidráulicos, enfim, de projectar de forma talvez um pouco ingénua mas muito entusiástica as soluções materiais de uma sociedade nova, justa e horizontal, onde os homens viviam “do lado da natureza”. Melhor do que estas minhas curtas palavras para explicar o espírito do TBARN são os versos de Mutimati Barnabé João, heterónimo ocasional do António Quadros:
(...) Eu o Povo
Vou aprender a lutar do lado da Natureza
Vou ser camarada de armas dos quatro elementos
[a terra, o ar, a água e o fogo].
Entretanto, em salas contíguas, o Centro de Estudos Africanos dava igualmente os seus primeiros passos, dirigido pelo Aquino de Bragança. E não podia haver nada mais diferente do TBARN do que este Centro de Estudos Africanos, atento à história recente da libertação de Moçambique, à geopolítica, à economia política regional, e às grandes questões da Guerra Fria. É a época em que a primeira geração de investigadores do CEA produz o estudo Zimbabwe: alguns dados e reflexões sobre a questão rodesiana.
As diferenças na natureza dos dois centros, assim como as diferenças de carácter dos seus dois mentores, estão na origem de uma relativa tensão desenvolvida entre eles. De facto, não podia haver duas pessoas mais diferentes uma da outra que o António Quadros e o Aquino de Bragança. Enquanto que o primeiro passava os dias tratando de abelhas e desenhando coisas admiráveis com as mãos sujas de terra, largando para o ar os fumos do cachimbo que o ajudavam a pensar, o Aquino de Bragança era um verdadeiro homem de salão, com um humor fino, sussurrando-nos sempre ao ouvido um segredo novo sobre os poderosos, ou mais publicamente um dito chistoso adequado a cada circunstância, de preferência em francês. Enquanto o António Quadros deixava o estirador onde passava os dias para ir lá fora conferir um pormenor no seu passo curto e apressado, escondido atrás de uns óculos negros, o Aquino de Bragança permanecia sentado no sofá com a mão estendida a sublinhar uma ideia e com a perna cruzada a abanar, fazendo com isso abanar a barriga, naquele seu gesto tão característico que os que com ele privaram lembram bem. Não é pois de espantar que o Aquino de Bragança se referisse ao TBARN como “o projecto do louco”, e que o António Quadros, por sua vez, falasse do CEA como “aquela coisa do intriguista internacional”.
Quanto a nós, discípulos de um e alunos do outro, estávamos na privilegiada posição de poder beneficiar de ambos os modos de pensar a realidade – uma que uns viam como demasiado política, a outra que outros viam como demasiado poética. Benefício de aprender com quem, apesar de viver dentro da universidade, nem por um momento deixava de pensar na realidade lá fora. Nessa altura (e digo-o sem qualquer pudor), acreditávamos em mestres.
É por esta altura – se não estou em erro na segunda metade de 1977 – que surge a Ruth First. Quando penso nela, a primeira “imagem” que me vem é sonora, os tacões de uns saltos altos martelando furiosamente o chão do corredor. Só depois lembro as pernas arqueadas capazes desse andar vigoroso, o nariz aquilino e o queixo saliente, os óculos de massa, sempre impecável no seu saia-casaco. E uma voz enérgica e autoritária. Na minha memória aparece sempre cercada de muitos investigadores. Ou melhor, tinha sempre investigadores à disposição, em gabinetes onde ela entrava de rompante e de onde saía apressada com uns papéis na mão.
É a partir desta altura, penso eu, que o CEA vive o seu período por assim dizer mais próspero. Em parte, grande parte mesmo, essa prosperidade há-de ter sido devida à acção da Ruth First. As biografias dela mostram do que foi capaz o seu brilhantismo e agudeza intelectual, associados a um espírito organizador forjado na luta contra o apartheid.
Atrevo-me a pensar que ela aceitou o convite para vir para Moçambique porque aqui estaria mais próximo do seu próprio país, e daqui poderia dirigir muito melhor um trabalho como aquele que veio a ser desenvolvido pelo núcleo de estudos da África Austral (penso que era assim que lhe chamavam), uma espécie de observatório da evolução geopolítica e económica da região, e da África do Sul em particular. Eventualmente, um suporte académico ao ANC também. Mas, uma vez aqui, ela desenvolveu não só essa vertente mas também organizou e dirigiu, com muita eficácia, projectos de pesquisa e análise social e económica da realidade moçambicana, dos quais o mais conhecido foi sem dúvida o do mineiro moçambicano, logo em 1977. Seguir-se-iam outros, importantes, cujos relatórios ainda hoje servem de suporte às minhas aulas sobre esse período, como o da transformação rural em Gaza (1979), o da transformação da agricultura familiar em Nampula (1980) ou vários sobre a comercialização agrária (1980/81), para citar só os desta época. Em 1980 surge o número 1 da revista Estudos Moçambicanos subordinada ao tema subdesenvolvimento e trabalho migratório, ou seja, seguindo as duas vertentes da realidade moçambicana e da ligação à região, no fundo uma só. Finalmente, há que referir também o seu papel na organização do Curso de Desenvolvimento, que marcou até hoje toda uma geração de moçambicanos e que, por sua vez, se reflectiu na própria pesquisa, potenciando-a e enriquecendo-a.
Mas penso que atribuir o sucesso do CEA neste período apenas à Ruth First seria, embora merecido e justo, algo incorrecto. Seria o mesmo que atribui-lo apenas ao Aquino de Bragança e à sua arte de gerir o CEA de uma outra maneira, puxando fios invisíveis. A meu ver, da mesma maneira que as tensões entre os diferentes departamentos fizeram a força e a criatividade dentro de um IICM em transição, o sucesso do CEA deveu-se em grande medida às tensões criativas que se desenvolveram dentro dele, feitas do encontro de forças diversas, com maneiras diferentes de perspectivar a realidade. Como se, dentro do CEA, houvesse vários CEAs: o núcleo da África Austral, o Curso de Desenvolvimento e os projectos supervisados pela Ruth First, a Oficina de História impulsionada pelo Jacques Depelchin e próxima do Aquino de Bragança (procurando repensar a história recente da libertação do país), e ainda pequenas ideias de projecto com as quais o Aquino de Bragança não cessava de nos aliciar (fazer um estudo do nacionalismo moçambicano à maneira de Hélène Carrére d’Encausse, organizar um programas de entrevistas a antigos combatentes, etc., etc.).
Finalmente, é ainda justo reclamar para o Aquino de Bragança um importante quinhão, pela arte com que sempre soube negociar a actividade do CEA no seio da esfera política e governamental, numa altura em que a margem de manobra era bem mais reduzida do que hoje. Não só terá realizado aquilo a que hoje se chamaria marketing, apregoando ao mais alto nível dos círculos do poder os serviços enormes que o centro tinha para oferecer, como, no sentido inverso, terá amortecido alguma onda de choque originada por opiniões mais heterodoxas de alguma investigação.
* * *
Convém, neste momento, fazer uma pausa para nos perguntarmos de que serve esta incursão ao passado, ainda por cima por um terreno que outros aqui na sala conhecem bem melhor do que eu, que do CEA fui apenas vizinho e colaborador ocasional. De facto, o passado não existe, esfuma-se a cada dia que passa. O que existem são apenas discursos sobre ele, todos eles intencionais, todos eles alimentando-se desse passado para serem eficazes no presente. O historiador francês Jacques Le Goff escreveu certa vez que a memória só procura recuperar o passado para servir o presente.
[3] E, além de vermos o passado com os olhos do presente, além de recorrermos ao passado como quem recorre a uma arma para o combates do presente, também acontece muitas vezes esquecê-lo, quando ele não nos serve ou se torna incómodo.
Eu e outros, nesta sala, achamos que este passado velho de trinta anos nos pode ser útil neste nosso presente, e que portanto não pode ser esquecido. Pelo menos foi assim que eu entendi o encontro de hoje: em que medida as ciências sociais de há trinta anos, num ambiente que referimos brevemente, podem iluminar as ciências sociais de hoje, que respiram num contexto totalmente diferente.
Vou procurar fazê-lo, no tempo que me resta, escolhendo, de entre muitas, três categorias que, no meu entendimento, correspondem a outras tantas virtudes do contexto que sumariamente retratei. Ou, se se quiser, três lições que pessoalmente retiro deste exercício de memória dos dias moçambicanos de Ruth First.
À primeira chamarei Diversidade. Não foi por acaso que insisti tanto nas tensões existentes entre os diversos actores: tensões entre o TBARN e o CEA, tensões entre o TBARN e um Centro de Estudos de Comunicação de que nem sequer falei, tensões entre todos estes e uma Faculdade de Letras em plena e empenhada actividade, tensões (chamemos-lhes assim) no interior do CEA, e até uma tensão que durante um tempo foi muito referida, entre o CEA e o Departamento de Antropologia, em volta da possibilidade ou não da antropologia se libertar do seu passado colonial.
O meu argumento aqui apoia-se na muito utilizada metáfora botânica segundo a qual uma monocultura é sempre mais pobre e vulnerável do que a floresta natural. Esta, muito mais bela, luxuriante, é feita de espécies diversas, todas elas procurando adaptar-se ao meio e estabelecendo relações de complementaridade. Ou seja, defendo que estas tensões inter ou intra-departamentais, quando resultantes do confronto de perspectivas académicas diversas, constituem o cerne da actividade universitária, são elas que garantem o progresso das ciências sociais.
As ciência sociais, tal como as outras ciências, são feitas de indagações, de contradição. Quer dizer que a elas é estranha a certeza, a verdade absoluta. A verdade absoluta é estéril, traz à lembrança a ordem e a hierarquia, mas também a estagnação, tudo aquilo que imobiliza o mundo. Adorno diz que o absoluto, a totalidade, é a mentira. Steiner escreve que a incompletitude e o fragmento são as palavras de passe do modernismo. O fundamentalismo dos absolutos, na sua defesa do texto definitivo e supostamente “verdadeiro”, no seu ódio à letra desgovernada e secular, são os principais inimigos das ciências, que só vivem se respirarem o ar da liberdade. Só a interrogação crítica, assente em contradições, provoca o movimento, a busca do novo. A tal transformação. Só na diversidade, portanto, tal pode ocorrer.
À segunda lição que esse passado nos deixa, relacionada intimamente com a anterior, chamarei Hospitalidade. Hospitalidade no sentido que lhe conferiu o pensador Emmanuel Lévinas, de gesto de acolhimento, ou seja, predisposição a receber o Outro, a receber no nosso seio aquele que é diferente de nós. Guardo desse tempo de há mais de trinta anos a memória de todos os dias desembocarem nesta universidade, e especificamente no edifício do CEA, dezenas e dezenas de investigadores nacionais e sobretudo estrangeiros (havia ainda poucos investigadores nacionais nessa altura), oriundos dos mais diversos quadrantes. Deixo, ao acaso, nomes que a minha memória traz: Kurt e Martha Madorin, Barry Munslow, António Pacheco, David Wield, Marc Wuytts, Bridget O’laughlin, Kurt Habermeier, Helena Dolny, Colin Darch, Judith Head, Dan O’Meara, Rob Davies, Alpheus Manghezi, Sipo Dlamini, Valdemiro Zamparoni, Jacques Depelchin, John Saul, mas também Pierre-Philipe Rey, Claude Meillassoux, Christine Messiant, Catherine Cocquery-Vidrovitch, Cristian Geffray, Yves Lacoste, Marc Ferro, Philippe Constantin, Nadine Wanono, Lúcio Flávio Regueira, Constante Pereira, João Azevedo, Teresa Muge, Marcelo Ramos, Miguel Arrais Jr, Christine Vershuur. E, evidentemente, a própria Ruth First. A lista é interminável, referi apenas os dessa altura, e mesmo assim muitos ficaram de fora. Muitos deles tornaram-se especialistas de matérias relativas a Moçambique depois de aqui terem estado, outros eram já reputados académicos quando aqui chegaram ou por aqui passaram. Todos eles, de uma forma ou outra, participaram no aprofundamento da nossa academia. A todos eles recebemos hospitaleiramente.
Quando falo em Hospitalidade falo numa importante – mesmo fundamental – dimensão ética de respeito pelo Outro, mas não só. Quero também significar, como Lévinas, uma dimensão de crescimento, de ensinamento, na medida em que (e cito), o Outro “vem do exterior e traz-me mais do que aquilo que eu contenho”.
[6] Ou seja, a presença desses Outros, com as suas investigações, perspectivas e problemáticas diversas, constituiu uma inestimável fonte de riqueza que alargou não só a nossa visão como também o número e qualidade das perspectivas sobre a nossa realidade. Trouxe mais do que aquilo que já continhamos. Tornou-nos a nós, e aos discursos sobre a nossa realidade, mais ricos.
Ao contrário, a atitude inospitaleira, autárcica, é, na academia, a atitude de quem se basta, de quem perdeu a curiosidade e a ambição de querer saber mais, de querer aprender. A atitude de quem desistiu da academia, mesmo que a inércia, a carreira ou outra obscura razão o façam permanecer dentro dela. A atitude de quem no outro só consegue ver uma ameaça.
Por isso a minha pergunta é: que fazemos hoje para cultivar essa hospitalidade que povoava os corredores das ciências sociais de investigadores associados e acrescentava o nosso conhecimento? A minha pergunta é: porque estão vazios de investigadores os nossos corredores? A minha pergunta é: Como povoar novamente os nossos corredores?
Finalmente, à terceira e última questão que quero trazer desse passado para aqui chamarei Confiança, e ela tem a ver com as complexas relações entre a esfera política e a esfera académica. Referi já o papel importantíssimo que o Aquino de Bragança e a Ruth First desempenharam em defesa do CEA junto da esfera política. Eles e o Fernando Ganhão, reitor nessa altura. Davam voz à academia, faziam dela não um subordinado mas um interlocutor crítico num diálogo produtivo com o poder. A este respeito não resisto a citar o pensador Edward Said, que escreveu que a nossa função enquanto académicos é ampliar o campo de debate, não é estabelecer limites concordantes com a autoridade dominante. A ciência move-se com base na contradição, assenta na incerteza. Fazendo a academia, por definição, ciência, ela será sempre uma má cumpridora de tarefas. Por definição, há entropia neste processo, muitas perdas de energia. Por vezes são necessários muitos fracassos para se obter um simples sucesso. Por isso o destino da academia é radical: ou criar ou ser inútil.
Penso que aqueles de quem falo criaram. Procuraram definir-se através do debate ao invés de esperarem que outros os definissem. Debateram o caminho a seguir ao invés de esperar que esse caminho lhes fosse indicado. Com isso se tornaram respeitados pelos diversos quadrantes políticos e estatais, que lhes batiam incessantemente à porta para pedirem estudos sobre isto e opiniões críticas sobre aquilo.
Lembro com grande nitidez o dia em que ouvi pela última vez os saltos altos martelando o chão do corredor. A Ruth First espreitou à nossa porta e anunciou que daí a minutos seria aberta uma garrafa de vinho no seu gabinete, em despedida do colega John Saul. Virou as costas e saiu. Nós arrumámos as nossas coisas e quando nos dirigiamos para lá ocorreu a explosão. Umas horas mais tarde, quando os ecos do terrível atentado serenaram, lembro-me de ter pensado que nada voltaria a ser como dantes.
É um dever de reconhecimento lembrar esses académicos cujos interesses iam muito além de fazer uma carreira, que tinham prazer naquilo que faziam. Inquietos, e portanto com necessidade de o fazer, e que o faziam para acrescentar alguma coisa à soma do mundo. Académicos cujo propósito não era ilustrar nem cumprir rituais (incluindo o de ganhar dinheiro), não era dar provas de obediência. Era ajudar a diminuir o sofrimento da existência (no sentido literal, científico e cultural); era combater a ignorância; era ajudar a transformar o local concreto sem perder de vista que faziam parte do universal.
Para mim esse passado, com os valores que comportava, constitui uma referência. Uma referência à qual nos deveremos esforçar por regressar sempre que nos sentirmos afastados dela. Veremos se somos capazes de entregar às gerações seguintes este legado de princípios e valores que generosamente nos foi deixado.
João Paulo Borges Coelho
Mutimati Barnabé João, Eu, o Povo. Poemas da Revolução, Maputo: Frelimo, 1975.
Realizado em 1976, e publicado dois anos depois como Centro de Estudos Africanos da Universidade de Maputo, A Questão Rodesiana, Lisboa: Iniciativas Editoriais, 1978.
Citado no frontispício de Tzvetan Todorov, Les Abus de la Mémoire, Paris: Arléa, 2004.
Ironicamente, apesar das acusações proferidas por intelectuais do CEA, portadoras de uma certa ortodoxia característica da época, a antropologia ela própria acabou por se revelar mais atenta aos primeiros sinais internos do conflito civil da década de 1980 em Moçambique.
Da mesma maneira que a tensão entre forças políticas diversas constitui o cerne do funcionamento democrático das sociedades e o progresso destas.
Jacques Derrida, Adeus a Emmanuel Lévinas, São Paulo: Editora Perspectiva, 2004, p. 35-6.